terça-feira, 30 de novembro de 2010

Poesia Ortônima"

Quando se fala de Fernando Pessoa, interessa distinguir o ortónimo dos heterónimos que criou e para quem estabeleceu uma biografia própria. O seu universo heteronímico permitiu-lhe criar diferentes personalidades com outros nomes, como Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos; mas há uma personalidade poética activa que mantém o nome de Fernando Pessoa e, por isso, se designa de ortónimo.
O Pessoa ortónimo escreveu a Mensagem, marcada pelo ocultismo, mas também outros poemas de características muito diversas. Compôs poemas da lírica mais simples e tradicional, muitas vezes marcada pelo desencanto e pela melancolia (como sucede no Cancioneiro); fez um aproveitamento cuidado do impressionismo e do simbolismo, abrindo caminho ao modernismo com o texto-programa do paulismo (em Impressões do Crepúsculo), onde põe em destaque o vago, a subtileza e a complexidade; desenvolveu outras experimentações modernistas com o interseccionismo e com o sensacionismo; revelou-se dialéctico, procurando a intelectualização das sensações e dos sentimentos.
O Pessoa ortónimo revela um drama de personalidade que o leva à dispersão, em relação ao real e a si mesmo, ou lhe provoca fragmentações.
Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está evidente, por exemplo, em Meu coração é um pórtico partido, ou nos poemas interseccionistas Hora Absurda e Chuva Oblíqua. Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas, de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços; uma intersecção da horizontalidade com a verticalidade. O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. Daí a intelectualização do sentimento para exprimir a arte, que fundamenta o poeta fingidor.


Meu amorzinho, meu Bébé querido:
 
São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apezar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Ha trez noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horriveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estupida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o somno. É que, sem ter febre, eu tinha delirio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influencia directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de hontem arreliado com cousas, que se estão atrazando, relativas á vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermedio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma serie de noticias desagradaveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.
Depois, estar doente exactamente numa occasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.
Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espirito em que tenho vivido estes dias, estes dois ultimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausencia, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quasi três dias!
Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste hontem pelo Osorio? Comprehendo que estivesses tambem com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tães, que me doeu immenso ler a tua cartinha e ver o que soffrias. O que te aconteceu, amôr, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa peor que te acontecesse? Porque fallas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando d'elle, quando não tens para isso razão nenhuma?
Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimonia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remedio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sêde e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.
Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.
Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu....
Fernando

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