terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mulheres de Atenas -Analise

 Mulheres de Atenas -Analise

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro se encolhem
Se confortam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.

BUARQUE, Chico, BOAL, Augusto. In: Chico Buarque – letra e música. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p. 144

Analise-

“Mulheres de Atenas” é uma canção que pode ser considerada uma advertência para as mulheres
contemporâneas que ainda vivem sob um modelo de uma sociedade patriarcal, com costumes
praticados há quase 400 anos antes de Cristo, em Atenas, na Grécia antiga. Para expressar a
idéia irônica que sugere uma mudança de vida, o autor provoca intertextualidade com as maiores
obras sobre a mitologia grega: Ilíada e Odisséia, ambas atribuídas a Homero.
Ao se referir
àquelas obras, o poema traz como referência a história de duas mulheres que representam as
mulheres atenienses: Penélope e Helena. A primeira, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia,
viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e
absoluta fidelidade. A segunda, motivo da guerra de Tróia, representa um símbolo da beleza para
quem seus maridos voltam sempre correndo para seus braços, após deitarem-se e fartarem-se
com suas famosas falenas (mulheres dissolutas, cortesãs, prostitutas elegantes e distintas).
Composto de 5 estrofes de nove versos cada uma, o poema apresenta um esquema fixo de
rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima
com o quarto; o sexto com o sétimo. Os dois primeiros versos funcionam como refrão. As idéias
básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse inicial
uma sexta estrofe, entretanto, sugere uma continuidade às advertências proferidas.
Os sujeitos da história são as mulheres de Atenas, no sentido coletivo. Por isso, o eixo
paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos
conjugados em 3ª pessoa do plural, como uma ação que ocorre no momento presente. É por isso
que a advertência é dirigida para as mulheres que ainda se submetem ao sistema patriarcal, em
completa subserviência aos seus desditosos maridos, até morrerem. Tais verbos marcam uma
situação cíclica, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas que vivem, sofrem,
despem-se, geram, temem, secam, em que o verbo viver se une com o verbo secar, isto é,
morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a
finalidade única de gerarem os filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas heteras
(falenas), ou amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer.
Não é só do ponto de vista estrutural que “Mulheres de Atenas” é surpreendente.
Semanticamente, ela se pauta sobre uma grande ironia. Assim, a grande surpresa da canção fica
por conta do sentido irônico que o autor estabelece na mensagem que procura passar para as
mulheres que não perceberam que ainda vivem centenas de séculos atrás, secando-se por seus
maridos, sem serem amadas ou tratadas com dignidade. O movimento feminista trouxe várias
conquistas nas últimas décadas e a evolução da condição feminina tem alterado o
comportamento geral, de homens e mulheres, no sentido de um equilíbrio maior na distribuição
de funções, no trabalho e na vida em família. Entretanto, há mulheres que ainda não perceberam
essa mudança nem a importância de seu papel na sociedade contemporânea. Por isso, Chico faz
a advertência, sugerindo que elas mudem de conduta e tomem outros rumos. Assim, o autor
exprime-se do contrário daquilo que se está pensando, ou seja, NÃO é para seguir o exemplo
daquelas mulheres de Atenas. Mirem-se no exemplo delas e façam o contrário!
A ironia não se prende somente à falta de clareza da própria condição da mulher.
O autor estende sua ironia também aos homens que se consideram superiores e elevados, em relação ao
sexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada estrofe veremos que sempre
quando se refere aos homens atenienses, Chico faz complementos enaltecendo suas
características. O exagero e a insistência da exposição das qualificações superiores masculinas
tornam-se cansativos e chamam bastante a atenção daqueles homens que, na visão das
mulheres de Atenas, são heróis, mas, por outro lado, são cativos de suas falenas, de sereias,
aventuras, naufrágios e morte prematura, por inconseqüências de seus atos vulgares. Assim, o que parece querer enaltecer as habilidades e as características dos maridos atenienses torna-se
outra ironia de grande dimensão. Os seus maridos, orgulho e raça, poder e força, bravos
guerreiros, procriadores, heróis e amantes, na verdade são ausentes, agressivos, mal amantes,
violentos, irresponsáveis e infiéis. É nesse sentido que ironicamente o autor se refere à
supremacia masculina dos maridos das “Mulheres de Atenas”.
Esse é, sem dúvida, um majestoso texto, como muitos outros desse poeta ainda pouco conhecido
e não tão bem avaliado: o nosso grande Chico Buarque de Holanda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário